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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De Muletas

Essa é a semana da minha estréia como colunista do blog. Aliás, é a minha estréia como colunista. Escrevo letras de música, projetos na área cultural, contos e outras coisas, mas nunca publiquei meus escritos em nenhum meio de comunicação, nem mesmo num blog. Por isso, estou muito feliz de fazer parte da família "Clóvis" e poder dividir minhas idéias com todos vocês, leitores. Infelizmente, pra mim, começo minha nova atividade revelando aqui as habilidades que adquiri nos últimos 23 dias, quando num jogo de futebol, quebrei meu tornozelo e rompi os ligamentos. Espero que ajudem todos vocês, leitores, a enxergar um lado positivo de estar imobilizado. Bem, pra início de conversa, essa infelicidade, ocorreu no dia 07 de Agosto e a cirurgia, a que fui submetido, aconteceu dez dias depois. À essa altura, você, leitor, deve estar se perguntando: "mas, que habilidades são essas, que um cidadão, operado do tornozelo, desenvolve em pouco mais de vinte dias?" Confesso, que minhas ordens médicas, foram para ficar em repouso absoluto, sem poder, em hipótese alguma, apoiar o pé esquerdo no chão. Então, para que não haja mais nenhuma áurea de mistério envolvendo o tema do meu texto, revelo que tais habilidades, são em relação ao manuseio das muletas, e como sobreviver nesta situação. Jogo futebol, praticamente, desde que nasci, e nunca, nunca mesmo, quebrei alguma parte do meu corpo, passei por alguma cirurgia ou levei algum ponto. Anestesia mesmo, só no dentista.Mas, desta vez, passei pelo pacote completo, uma espécie de "batizado" para sair dos "trinta" e entrar no "enta" (quarenta, cinquenta, sessenta, ....). E acho que pela primeira vez na vida, passei a dar valor ao meu corpo. Entendi o quanto precisamos de cada membro dele. É claro, que existem pessoas que já nascem sem algum ou que, por algum tipo de acidente, perdem alguma parte. Mas, vivem, normalmente, e felizes, na maioria das vezes. Mas, . . . . . . sem dor. Eu não perdi o meu pé, graças a Deus, mas, preciso de muito cuidado para me locomover, porque dói pra cacete!!! As duas noites que se seguiram ao pós operatório foram barra pesada. A primeira, ainda no hospital, precisei de uma injeção, do tipo "sossega leão" para conseguir dormir, e a outra, já em casa, não consegui pregar os olhos, mesmo a base de um coquetel de remédios, pesadissímos: cefalexina de 500mg, Voltaren de 75 mg e o PACO - paracetamol + fosfato de codeína de 530 mg. Todos esses remédios e mais uma rodada de cerveja, dá pra fazer uma viagem bacana, não? Mas, sai caro!! Bom, mas, vamos, ao que interessa. Uma das principais habilidades desenvolvidas, diz respeito ao equilíbrio. Hoje com o auxilio das muletas, sou capaz de subir e descer escadas, deslocar-me com tranquilidade por entre os móveis das sala, vestir a cueca ou a bermuda num pé só, e acho até, que me arrisco numa caminhada de 300 metros. Ou seja, se houver algum projeto do Grupo Corpo, para um espetáculo com bailarinos que se utilizam de muletas, eu me candidato!!! Também aumentei bastante a minha paciência. Numa situação delicada, como essa, ficamos reféns da boa vontade alheia. Por exemplo: eu moro numa casa com dois andares, onde a cozinha fica no primeiro e a sala, onde passo os dias e as noites, fica no segundo. Então, quando estou com sede ou fome, preciso que algum familiar, por gentileza, apanhe pra mim. Acabo vítima de inúmeras chantagens do meu filho mais velho, que insiste em trocar seus favores por coisas que o beneficiem. Tem que ter MUUUUIIIIITA PACIÊNCIA. Tomar banho, também exige algumas habilidades. E entre elas, se encontram algumas das já citadas: equilíbrio e paciência. Confesso que no começo, a dificuldade era tamanha, que cheguei a ficar dois dias sem uma ducha quente. Nada que tenha me deixado com um cheiro desagradável. Nas minhas condições, suar é quase um luxo. Ver televisão, também se tornou uma prática muito importante e, ao mesmo tempo, obtive uma constatação: não dá para viver sem uma tv por assinatura. Não há como depender, apenas, da programação dos canais abertos. Percebi que a televisão é uma companhia. É ela que está contigo nos momentos de solidão, nos momentos em que ninguém vem te visitar, nos momentos em que os parentes estão no primeiro andar e fingem que são surdos, quando você grita querendo algo. A televisão não te pergunta pela milésima vez, como foi que você se machucou. Ela é uma mulher bonita, gostosa e MUDA!! Há ainda, uma outra coisa que aprendi, e que considero muito valiosa para a minha vida: dormir sentado. Vocês não imaginam como isso me acrescentou.Por ter muitas dores ao deitar, encontrei uma posição confortável, no sofá da sala. Desde então, vivo ali. Sentado e com o pé para o alto, acordo, almoço, vejo tv, durmo e acordo, de novo, sem sair do lugar.Já adquiri, até um certo "apego" pelo local, e não sei, como farei, depois de curado, para voltar para a minha cama. E acreditem, não estou desenvolvendo nenhum tipo de problema na coluna. A vantagem dessa habilidade, é que não terei mais dificuldades em dormir em ônibus ou trens, ou mesmo, em reuniões ou palestras no trabalho. Desenvolvi também, elasticidade. Para ir ao banheiro fazer o "nº 2", por exemplo, não é nada simples. Pensem o seguinte: para se limpar, é preciso apoiar o peso do corpo no pé esquerdo, pois a mão que passa com o papel na bunda, é a direita, não é mesmo? Então, como fazer, se não posso apoiar o meu peso no pé esquerdo? Já imaginaram?!? Lamento amigos, mas, infelizmente, esse é um segredo que não pretendo revelar. Só digo que tem a ver, com elasticidade. O que certamente, me qualificaria como ginasta para as próximas Olímpiadas. Ginástica artística, é claro. FUI!!!!!!

Sandro Cortes.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Olhos de Parede

Abro os olhos lentamente, em uma manhã de domingo quase gélida. Fico na cama sentindo a vida despertar em cada músculo de meu corpo, reavivando as sensações da luta cotidiana, travada no trânsito, nos trens, no caminhar frenético pelas ruas da cidade...
Tenho que encontrar uma maneira de filtrar, ou melhor, digerir tudo isso e transformar em algo positivo. Em energia motriz para continuar a luta pela sobrevivência, travada nas florestas concretas plantadas por nós homens e que a cada dia invadem vorazmente o verde que nos alimenta. É uma incrível, porém real, contradição de nossa parte, plantamos o que nos destrói, destruímos o que nos alimenta.
Levanto, ou melhor, sento em minha cama, pego minhas armas: notebook, rabiscos em alguns papéis que foram acumulados durante as sensações da semana, caneta, um copo de café. Com estas armas em punho, começo a transposição da matéria e crio minha válvula de escape:

Dias de fúria

Esmagados pelo sórdido cotidiano

Olhos, espectadores silenciosos da angústia

Dias sem cura
A sociedade adoece agonizante
Em sua louca correria

Assisto a tudo calado
Hermeticamente fechado
Sistematicamente isolado
Com meus olhos vidrados

Duvido da felicidade dos sorrisos
Mais parecem retratos amarelados
De vidas sem vida

Duvido da veracidade dos olhares
Mais parecem janelas abertas
Para negras paisagens

Busco um sopro de vida
Em existências precárias
Que nem percebem as feridas
De sua alegria fingida

Pobre de mim
Assistindo a tudo, de mãos atadas
Vivendo a agonia de minha alma calada.

Nada melhor do que transformar vida em poesia. Deixar fluir o que está contido e acumulado em cada entranha do corpo. Só assim consigo gritar o que está calado e ser ouvido bem alto!
E mais uma semana se inicia...A nave vai...


André Fraga.

Aluga-se...

Star Man - Jota Quest
Eu não vim aqui pra delirar/Neste lugar eu sou antena/falante, eu vejo tudo/Eu só vim aqui pra contemplar/Essa riqueza, água e fogo/Dividindo o mesmo mundo/Vivem sem se amar/Aqui a verdade é um absurdo/Sem tempo pra sonhar/E o sonho é o começo de tudo/Star man!!!/Star man!!!/Star man!!!/Star man!!!/Vi que aqui o certo/Não é nem de perto o correto/E o que gera sofrimento é o egoísmo burro/Lá na minha estrela há mudança/Movimento, dinamismo, alegria/Liberdade e sentimento/Vivem pra amar/A luz brilha mais forte onde é escuro/Há tempo pra sonhar/E o sonho é o começo de tudo/Star man!!! A poesia das estrelas/Star man!!! Dos cometas aos gametas/Star man!!! A canção do novo mundo/Star man!!! A poesia das estrelas/Star man!!! Dos cometas aos gametas/Star man!!! A canção do novo mundo/Star man!!! O universo que se sonha junto

Quanto deve ser um aluguel de uma casa na Terra, pra quem não é da Terra?Difícil saber.Vou alugar a minha, e como eu não gosto de viver no Mundo da Lua, resolvi morar numa estrela.Prazer... podem me chamar de Star Man.Aqui nessa estrela ( vou preservar a identidade do lugar, porque aqui parece um paraíso turístico... só que.. não tem ninguém), construí uma antena para ter informações da Terra, afinal, tenho que pôr minha casa na Terra nos Classificados.Como farei isso?Posso dizer que meus vizinhos não andam muito a fim de falar a verdade? NãoE dizer que eles estão muito preocupado com riqueza? Jamais, jamaisTalvez, falar que muitos dos meus vizinhos não ligam mais pros seus próprios sonhos? ah.... não!Eita.... fazendo assim quem vai comprar??A casa tá ótima, mas , po, com essa vizinhança e esse clima, ninguém seria " de outro planeta" a ponto de comprar a casa.Bem... vou me concentrar... deve ter algo de bom que eu possa falar da minha casa, a Terra.Ah sim...A minha antena começa a captar, o canto dos pássaros, e eles me lembram de alguns dias que eu tava com problemas e alguém me ajudou.Nem preciso da antena, lembrei que pude ajudar outros, e o sorriso dessas pessoas foi de " outro planeta"! ( que nada, foi desse mesmo, ainda bem)Não preciso, mas a antena acaba de captar o barulho do mar, e com ele, consigo lembrar de sentir as várias amizades que fiz quando estava na Terra. Os risos, as piadas...Mas que antena chata... ela fica me lembrando muitas coisas boas pra pôr nos classificados.. tá bom já sei!!Tá, escrevi nos classificados... amizades... sorrisos... OK tudo escrito.Ah... quer saber... não vou botar nada nos classificados.Tô pegando o próximo foguete pra Terra...Em tempo, minha casa não está mais pra locação, muito menos à venda!Sou otimista, as coisas boas valem mais que as ruins... vou voltar pra minha terrinha chamada Terra.Fui... quer dizer, "voltei"!

Diego Sandins.

Aniversário

Olá, pessoal... Como muitos já devem estar sabendo, hoje, dia 13 de agosto de 2010, nós estamos completando nosso primeiro ano de vida. Essa data é muito importante para nós. Foi o dia em que o estatuto do blog foi definido... o dia em que o último passo para o blog ir ao ar foi dado. Um sonho comum de alguns bons amigos teve 9 meses de gestação para em agosto do ano passado se tornar realidade. É incrível a receptividade que tivemos de vocês. Idéias, ajudas, discussões... de adolescentes estudantes do ensino fundamental a doutores professores de universidades... todos lendo O Clóvis. O blog é isso... fruto de uma vontade de nos doarmos a vocês. É de graça... não ganhamos nada com isso, mas estamos religiosamente escrevendo. Mesmo quando ninguém lê, sempre há um novo texto para vocês. Hoje, mais do que nunca eu digo: O Clóvis veio pra ficar... e por muito tempo. Espero que mesmo depois de nós e de vocês ele ainda esteja aqui.
A literatura de Luciano; as prosas poéticas de Danielle; as reflexões musicais de Diego; as críticas sociais de Bruno; e meu sarcasmo de praxe estarão agora sendo somados com o talento de André e Sandro. Espero que os recebam tão bem quanto a nós. Nosso blog acredita que a palavra pode transfomar pessoas, vidas. E que devemos dar algo às pessoas em retribuição ao dom que recebemos. Talvez um dia, quem sabe, sejamos fonte de inspiração a outros que nos inspirarão ainda mais.
Podem ter certeza que estaremos sempre aqui... pensando e os fazendo pensar conosco.
Obrigado por nos manter vivos. Vocês são o motivo disso tudo.

Como editor nesse primeiro ano, um abraço em nome de todos do blog:
Danielle Ribeiro;
Bruno Dutra;
Diego Sandins;
Luciano Fortunato; e
Ulisses Figueiredo.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cruel?

Pensamentos existenciais são cruéis com a gente. Podemos nos perguntar porquê vivemos ou para onde vamos... que nem aquele comercial da TVFutura. E geralmente chegamos à conclusão de porra nenhuma. Acabamos por preferir o que mais nos convém para que possamos viver da melhor forma possível. A certeza de que vamos morrer nos leva a imaginar tanta coisa que acabamos nos desvirtuando do real. É cruel isso... se vamos morrer, qual o sentido de viver? Como disse: cruel... cruel conosco mesmos que precisamos desse tipo de resposta e abraçamos a quem nos dá. Mas mais cruel que isso é quando começamos a nos questionar não sobre a nossa existência, mas sobre a existência dos outros, ou melhor, de tudo a nossa volta. Vou explicar: pare agora e perceba tudo a sua volta. As paredes... as cores... o teclado... os sons... os cheiros... a temperatura. Agora siga meu raciocínio. Todas as cores que você está enxergando são provenientes da luz que está iluminando o ambiente aí. Elas apenas batem numa superfície que tem a característica de refleti-las em proporção devida. Nossos olhos, portanto, recebem tal informação, filtra e as envia a nosso cérebro. Então se a cor é da luz, qual é a cor verdadeira das coisas? Não há cor? E se esse filtro estiver defeituoso? O mesmo com o tato... se nossa pele recebe contato e o informa ao cérebro, o que acontece quando apresenta defeito total? No mais, se todos os meus sentidos deixassem de funcionar e enviar informação ao meu cérebro, o que me provaria que tudo a minha volta existe? Se essa existência exterior é dependente dos meus sentidos, desses filtros de informação, quem pode afirmar que tudo que você está vendo, sentindo, escutando e etc. não está sendo manipulado por alguém ou alguma coisa. Ou seja, nesse exato momento eu estou tentado a crer que você, que está lendo esse blog, não existe. É como no filme Matrix, ou no Mito da Caverna, de Platão. Nosso cérebro está indefeso e sujeito à manipulação. Você pode estar morrendo e sucumbindo num hospital bem no futuro e a tecnologia deles o faz acreditar que está vivendo isso só pra amenizar sua dor. Ou nosso universo morreu e nossa tecnologia criou tudo isso para continuarmos existindo...
Tá bom, parei.


Ulisses Figueiredo.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Moça Em Janela De Hotel

Olho pela janela: é o Rio de Janeiro nublado e muito frio. Oculto. Imenso. Quase irreal. Ouço em meu headphopne um dos CDs que ele me deixou. Agora, uma grupo sinfônico que toca música do Metallica. Músicas de vários estilos e artistas estão misturadas num CD que ele me deu, pois ele é viciado em montar coletâneas, mais ou menos como faz aquele personagem do livro Alta Fidelidade, do Nick Hornby. Antigamente ele fazia com fitas, agora são CDs. Agorinha mesmo entrou nos meus ouvidos Jefferson Airplane – nada a ver. Legal e nada a ver. Mas ele é assim mesmo. Daqui a pouco pode pintar um samba com Los Hermanos que só fãs da banda de rock podem conhecer. Vá saber. Suas coletâneas são incoerentes. Como o seu vestuário tosco com alguns esporádicos e inesperados toques de requinte que só no corpo magro, leve e lindamente desengonçado dele podem parecer requintados. Ele só é coerente com uma coisa: suas incoerências.
Sei que lá fora é frio. Mas o quarto é quente e sou bela. Hoje sou a mais bela mulher do mundo, com minha camiseta branca e calcinha também branca, a me espreguiçar. A TV sem som é um pequeno papel de parede, um quadro vivo, uma caixa preta cheia de gente pequenininha se mexendo e sendo feliz. Volto pra cama e sinto mais uma vez os cheiros de deixamos no lençol e penso em como é bom ser mulher. Vontade de passar o dia nessa cama lembrando da noite que foi. Eu faria isso fácil, fácil. Mas, melhor não. Como o hotel não tem serviço de quarto é melhor eu subir logo para o restaurante e tomar o meu café, enquanto ainda é servido. Engraçado como os dois homens no elevador, que sobem também para o café, me parecem feios. Um barrigudo e com jeito de pseudo-intelectual e o outro, negro, com alguma elegância, porém sem graça. Mas não dá pra ver outros homens agora como machos. Não num dia como hoje. Só os consigo ver como seres humanos assexuados. Não os vejo com antipatia ou desagrado – até gosto de vê-los –, mas o fato é que depois da noite que passou – eu junto ao meu pequeno deus – todos os homens são pra mim seres sem sexo, com exceção dele, obviamente, que é – penso brincando com minha fantasia – o inventor do sexo.
O café do hotel é muito bom. Muitas frutas e muitas coisas pra escolher. Estou faminta e devo comer como nunca. Na noite que passou, parte do meu corpo se perdeu em suor e demais líquidos. O alimento que ele, o re-inventor do meu sexo, me deu na cama não alimenta o corpo. Muito embora aquilo, de calibre e sustância, seja puro corpo, não sustenta o meu corpo, apenas consumindo-o. É uma pequena morte que me torna viva e com mais fome. Sinto-me leve, não posso negar. Mas é um estado meio vampiresco. O corpo dele junto ao meu e dentro do meu não me satisfaz como um alimento. Aquilo é como um sangue a meio copo. Um vinho a meio copo. Um copo d’água pela metade, que alivia um pouco a sede, mas não a sacia completamente – e isso parece deixar a água mais saborosa que qualquer outra coisa. E ele em mim é melhor que água, melhor que vinho, talvez melhor que tudo. E tudo o que ele faz comigo... Ele só não é melhor que a completude por que a completude não existe. Hoje esses meus olhos que agora olham pelas grandes janelas do restaurante para uma Guanabara cinza são capazes de transformar tudo em beleza. E é disso que eu preciso, de instrumentos que transformem coisas simples em coisas belas. Sempre as janelas. Janelas são fábricas de vida. Graças a estes olhos outrora tão habituados a ver o feio do dia-a-dia da roda semi-viva, e que agora só parecem saber ver o bom das coisas, o meu dia começou assim, agraciado com belezas, onde até um lavatório com a torneira enferrujada é belo. E quanto a ele? Ele, o mais belo dos esquisitões. Como ele estará agora? O que estará passando pela cabeça daquele que tanto me faz sorrir? Sorrir com risadas, sorrir por dentro, e até sorrir chorando...
Desço. Ruas molhadas. Cachorro na calçada sorri pra mim. Uma velhinha que anda com muita dificuldade sorri pra mim. Policial sorri pra mim. Um lindo bebê no colo de sua mãe faz o mesmo. Bem. Vejo que o mundo sorri pra mim. Só voltarei a vê-lo à noite. Que tipo de dia terei nesta cidade tão bela e tão enigmática? Sou mais estranha no Rio do que seria em Nova York. E o Rio me é por demais estranho. Eu não entendo o Rio. No Rio eu não sei quem eu sou – e isso me aproxima de mim. É o tipo de lugar onde me sinto a todo instante pronta para uma gafe. Só que hoje não. Hoje eu sou da gema. Marisa Monte e Chico Buarque já muito me ensinaram sobre carioquices. E tenho aprendido até que ser carioca é não ser carioca. Não há, por exemplo, coisa mais boba que um carioca sair falando que é carioca. Seria como gente ter que falar que é gente. Não se diz “sou carioca”. Triste do carioca que precisa dessa afirmação. E cariocas não deveriam ser tristes.
Well. Depois de ter andado um bocado pelas ruas, praças, museus, Metrô, acho que vou beber algo. Chope? Vinho? Chope? Vinho? Não está tão frio assim: chope. Espuma gostosa. Lembra o beijo de ontem com gosto de cerveja. Penso em como eu demorei na vida a gostar de cerveja. Nossa... Demorei a gostar de tanta coisa. Acho que demorei a gostar de homem. E veja hoje como estou... Apaixonada por um. Paixão: esse negócio que o Freud parece ter tratado como desvio comportamental. Não sou especialista em Freud, mas assim li algo a respeito. Eu, finalmente uma mulher apaixonada. Mas quem sou eu? O que posso falar de mim? Meu nome é Michele. Sou filha de mãe brasileira com pai francês. Não conheço meu pai, a não ser pelas lembranças de minha mãe, além de uma fotografia dos dois tirada com uma antiga câmera Canon automática equipada com timer, vejam só, num quarto de hotel. Seus olhos sorriam na foto. Eles se conheceram num carnaval, de onde eu fui concebida. Então ele partiu pra não mais. Não gosto de carnaval. Não que eu não goste de bagunça e de climas orgíacos. Gosto de farra. Pode ser um traumazinho básico, relacionado a meu pai, a quem um dia pretendo conhecer. Eu preciso rever esse negócio com o carnaval. Se eu nasci de um carnaval, e se eu gosto de existir, logo eu deveria gostar de carnaval. É. Mas não gosto por enquanto. Gosto de passar a noite na balada, mas não muito. Prefiro o dia. E não gosto de natal também porque acho que todos ficam hipnotizados – e outros acordados demais, o que os faz mergulhar em tristeza. Também não gosto de ano novo. No entanto, gosto sim de certas celebrações. Difícil entender, eu sei. Sou de Touro, mas isso não faz a menor diferença, pois não acredito em astrologia. Minha cor preferida é o vermelho. No entanto, não uso roupa vermelha. Se eu botar vermelho eu não fico meia hora sem ir a um espelho. Sei lá. Acho que o vermelho é sagrado. Só é bom pra vestir modelo de revista e pra propagandas de Coca-cola. Até batom vermelho na minha boca me acanha. Não acredito em Deus. Tenho muito medo da morte e da velhice. Às vezes quase me pego rezando – rezando não sei em nome de que ou de quem. É a falta que um deus faz. Mas é foda. Deus se foi como o Papai Noel. Mas eu continuo acreditando em um monte de coisas que seriam absurdas para um físico ou astrônomo. Parece uma piada até pra mim: eu costumo acreditar em metade da laranja. E pelo que tenho vivido com esse cara... Puta que pariu... somos as metades de uma laranja. Ah. Que nada. Ele é apenas alguém a quem adoro porque me faz gostar de mim como eu nunca havia gostado. Obviamente isso não é pouco. E, saiba-se, pra eu adorar algo, é porque o objeto é digno de adoração.
“Posso me sentar aqui?”, ela pergunta. Tenho certeza: é a senhora idosa que arrastando os pés sorriu pra mim quando eu saía do hotel. “Sim, fique à vontade”, respondo. “Mas... a senhora, quem é? Nos conhecemos?” Ao que ela me responde com uma pergunta, no mínimo, estranha: “Você gosta muito de cinema, não é, querida? Gosta da ‘trilogia das cores’ do Krzysztof Kieslowski, não é mesmo?” Essa foi mesmo surpreendente: uma senhora tão velhinha falando de um assunto tão específico. Ainda que ela seja uma cinéfila, a pergunta é desconcertante. Se ela gosta de cinema, esperava-se que fosse falar sobre algum filme antigo, tipo Casablanca, sei lá. Mas Krzysztok Kieslowski foi demais. “Você já me viu antes de hoje”, ela continua. “Sou aquela que aparece nos três filmes, ‘A Liberdade é Azul’, ‘A Igualdade é Branca’, e ‘A Fraternidade é Vermelha’, tentando colocar uma garrafa numa grande lixeira, mais alta que minha estatura, somente conseguido no terceiro filme”. Então trata-se de uma atriz, que coisa legal. “Sim, é claro que me lembro das cenas. Aquelas cenas fizeram muita gente pensar em muita coisa, a senhora deve saber disso. A senhora é atriz profissional?”.
Sei que todo tipo de estória já foi contada, e que meu caso é só mais um. Já li coisas muito estranhas, como, por exemplo, um livro em que uma menina conversava com sua vagina. Acontece que se acharmos que não falta mais nada pra se mostrar, a literatura pára, a música pára, a arte pára, a imaginação pára, o sonho pára, a vida pára. E sei também que o aconteceu comigo foi real, não é ficção, eu juro. Aconteceu comigo num momento em que eu estava inundada de sentimento. Porém sóbria – não duvidem –, como poucas vezes estive em toda a minha vida. Que coisa chata essa de pensarem que os apaixonados estão dentro de um surto psicótico. Todos tentam viver uma vida emocionante. Gostam de se emocionar com os filmes, de se excitar com as viagens, de ficarem exultantes com a apresentação teatral do filho na escola... Mas quando alguém se apaixona – é isso é a grande emoção do ser – é tratado hoje como um insensato. Apaixonar-se por dinheiro pode. Apaixonar-se por gente é tolice, como parece dizer o novo senso-comum. O dinheiro é o verdadeiro deus deste mundo. Ele passou a ser a premissa para qualquer coisa que chamem de amor ou paixão. Por ele as pessoas vivem e morrem. “Deixe-me esclarecer uma coisa, minha bela menina”, continuou a falar. “Eu jamais tive o privilégio da juventude. Sempre fui velha. Sabe por que? Porque eu não sou uma mulher como você e como as que conhece. Sou uma personagem sem nome dos filmes do Kieslowski. A pobre mulher idosa que mal consegue andar. O que não quer dizer que eu não exista, pois personagens de filmes são mais reais que o que aprendemos a chamar de gente de verdade. O que tive em minha vida? Uma rápida aparição em três filmes. Pode parecer pouco. No entanto, isso me eterniza e me faz existir, compreende? Não se preocupe, você não está ficando maluca. Você está apaixonada, é verdade, mas não louca. Eu estou aqui, pode me tocar”. Levei minhas mãos até as dela e soube que era ela real. Suas mãos enrugadas e manchadas pela idade eram quentes. Subitamente chorei. Sem barulho, chorei com minhas mãos envolvendo as dela. Ela também estava emocionada, porém sem lágrimas – o que é típico de pessoas daquela idade. “O que a senhora faz aqui? Porque me procurou?” Com a voz cansada e mais doce do mundo: “Minha querida... Nós, personagens de filmes somos, imortais e onipresentes, mas não somos oniscientes. Portanto eu não sei o que me trouxe aqui. Talvez o Grande Diretor saiba.” “Grande Diretor? A senhora está me dizendo que Deus existe?” “Todos dizem que sim, não é mesmo? Muito embora eu tenha estado em toda parte e nunca o tenha visto. Eu sou criação da mente de um cineasta. Isso me faz preferir achar que as coisas são criadas por alguém. Já pensou que neste momento você pode estar sendo dirigida, fazendo parte de um filme? Consegue se lembrar, por exemplo, como foi parar naquele quarto de hotel? Você pode me dar um cigarro?” “Sim, claro”. Acendi o cigarro para ela, que tremia. Nesse instante fumávamos juntas, e isso é puro cinema. Pensei em voz alta, com os olhos parados: “Na verdade eu não consigo me lembrar de como cheguei ao hotel. Lembro-me da minha infância até. Mas não de como cheguei ao hotel”. Ela tossiu. “Não interessa ao roteirista, meu amor, explicar como você chegou ao hotel. Eu preciso ir embora” “Não! Por favor, fique mais!” “Adeus, linda moça!”. Ela levantou-se com bastante dificuldade e foi embora vagarosamente. Não sei porque motivo eu não tive forças para me levantar da cadeira e acompanhá-la. Fade out. De repente, como aconteceu com Juliette Binoche em “A Liberdade é Azul”, o sol veio bater suavemente em meu rosto ali na mesa daquele bar. Como é lindo um raio de sol no meio de uma nublada tarde de inverno no Rio. O sol veio como música. Podia ouvir o seu calor em meu rosto. Foi numa situação mais ou menos assim que a personagem de Juliette vislumbrou a velhinha a andar na rua com enorme dificuldade, possivelmente a pensar “e quando eu ficar velha?”.
Já no hotel, sentada no chão do box, com a água super quente batendo na minha cabeça, com os dedos indicadores tapando os ouvidos pra poder ouvir melhor o barulho da água chocando-se contra meu couro cabeludo sem a interferência do barulho da resistência elétrica do chuveiro, fiquei a pensar em tudo o que havia acontecido. Já não pensava mais no meu homem, mas apenas no que havia representado meu encontro com a velha senhora que me sorriu e me disse aquelas coisas. Engraçado: nos filmes ela não parecia ser o tipo de pessoa capaz de sorrir fácil. A personagem, sorrindo, se modificou pra mim – e como eu gostaria que alguns personagens que margeiam minha vida se modificassem pra mim. Egoísmo, eu sei. Porém seria aquela sempre a velhinha corcunda, ainda que pudesse sorrir, como não tivera a oportunidade de fazer nos filmes onde aparecera tão brevemente. E quanto a mim? Poderia eu voltar a sorrir depois de tudo o que houvera passado naquele dia. Alguém pode sorrir em meio a um turbilhão de dúvida? Alguém pode sorrir ao pensar nas desgraças do mundo, e se existe Deus, etc? Alguém pode sorrir enquanto pensa se sua vida é real ou se está dentro de um filme?
Seco os cabelos, ainda nua, frente à janela que dá para a Baia de Guanabara. As luzes do anoitecer carioca nesta janela de hotel podem trazer tantos pensamentos que acabamos por misturá-los de tal forma que chegamos a um estado de quase-não-pensar. Tento também não fazer esforço para ter pensamentos recorrentes sobre tudo o que aconteceu. Distraio-me olhando para o meu corpo, meus pequenos seios, meus pêlos pubianos muito negros, minhas pernas finas... Meu magro e belo corpo. Mais magra do que eu gostaria, é verdade. Mas tudo bem. Afinal, quem está cem por cento em paz com seu corpo? Acho que ninguém. Tenho força. Tenho poesia. Tenho pensamentos. Tenho um apaixonado – parece que ele está apaixonado por mim. Já ia me esquecendo, ele vai chegar daqui a pouco. Neste instante gostei de pensar nele, de quem já havia me esquecido. Campainha toca. Visto-me antes de atender. Ao abrir a porta, sorrio. Sorrio finalmente. Ele entra. Pergunto se ele está bem. Nos abraçamos com calor. Sentamos na cama sem muitas palavras. Nos damos as mãos. Venha o filme.

Luciano Fortunato.