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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sentado

Por que eu não levanto? Por que não levanto meu rabo de onde quer que ele esteja pregado, nem um minuto a mais e nem um minuto a menos, para ir a lugar algum? Existem muitas coisas que me fazem ficar em casa. Minha querida ingênua mãe e a única comida no mundo que não me dá gases... meu irmão brincalhão e invejosamente alheio às filosofias existências que me atormentam... minha namorada com seus instintos próprios do século XX de plano de carreira, de vida, de tudo.
Havia mais que pregos que me prendiam à minha casa. E quando falo casa, digo a todos os locais onde, principalmente, estão estas pessoas. Acontece que eu mudei. Mudei muito desde aquelas escolhas. Sabe aquelas escolhas que mudam pessoas? Não é como escolher comer ou no Bob’s ou no McDonalds. São escolhas que te transformam e que não são trapaceiras a ponto de só revelarem suas intenções após você não ter mais a opção de voltar atrás. São daquelas que vêm com o manual no qual estão bem explícitas as conseqüências de ligar sua TV de LCD 42”, recém comprada em 24 prestações, numa tomada 220V. É dessas escolhas que eu tô falando. Num momento se está diante da Bíblia e de algum daqueles livros de Richard Dawkins. Você escolhe o último e sabe muito bem onde isso tudo vai parar. Você opta não por ser adverso ao senso comum, mas porque faz sentido ao seu coração... à sua alma. Essas escolhas transformaram aqueles pregos em tachinhas minúsculas. E isso não quer dizer que estou mais propenso a levantar e nunca mais voltar. Quer dizer apenas que não preciso mais de tanta força caso o queira fazer.
Mas eu disse que existiam mais que pregos. Minha própria essência não me deixa levantar a bunda daqui. E não tô falando da essência que me torna ser-humano. Mas da que me torna indivíduo. É ela que me identifica com Alexandre Supertramp, do maravilhoso filme Into The Wild, ou com Sal Paradise, do homônimo livro On The Road. Personagens que levantaram e saíram. Mas eu me pergunto se Alexander, vigoroso leitor das mais instigáveis obras que o Homem já produziu, teria esquecido de ler Hegel. Se o fizesse, talvez tivesse entendido, antes de sua Ilíada, que o homem não é Homem fora da sociedade, e talvez tivesse tido chance para sua Odisséia. E Sal? Teria saído em direção a Denver se tivesse emprego... mulher... amigos em Nova Iorque? Eu gosto de acreditar que sim... até porque amo esses personagens. Então, se meu espírito se identifica tanto com eles... porque eu não me levantaria? Ainda não sei. Acho que, simplesmente, eu não quero fazer isso. Não há mais aqueles pregos... minhas rechaçadas e criticadas escolhas os transformaram para mim. Sempre fui alvo de muitas opiniões e dedos em riste – ora indicadores, ora médios. E amo todas elas, porque a cada uma que sobrevivo – quando digo sobrevivo, refiro-me à sobrevivência da minha alma - , minhas pernas se tornam mais fortes.
Mas minha essência não me leva a virar as costas para tudo e todos. Pelo contrário... me faz ficar bem de frente. Parado. Como aquele monolito do filme 2001: Uma Odisséia No Espaço, do Stanley Kubrick. Parado bem ali aos que quiserem chegar perto. Sentado em “minhas casas” esperando os que quiserem algo de mim. Porém... diferentemente a um monolito, já tenho a certeza que, a qualquer momento, posso me levantar.


Ulisses Figueiredo.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

La Jetée É O Máximo Dentro Do Mínimo

Aqui onde trabalho uma visão entorpece minha manhã: um ipê amarelo carregado de flores, que caem fazendo um tapete no chão ao seu redor. Isso dá um contraste lindo com o prédio cinza. Ou com o dia cinza. Ou, ainda, com a vida cinza. Se o ipê fosse retratado numa foto preto-e-branco ele não teria graça. Só tem graça ser retratado em preto-e-branco aquilo que já é preto-e-branco, como os sonhos. Como o filme que assisti há uns três meses. É um filme de 1962, francês, chamado La Jetée. Christian François Bouche-Villeneuve, com o nome artístico que o “popularizou”, Crhis Marker, é o diretor e realizador deste grande filme de meia hora de duração.O que La Jetée tem de mais? Em primeiro lugar, acho que o que ele tem de mais está exatamente onde tem de menos: é curto, sem cores, sem movimento... Isso mesmo: sem movimento. O filme é o que hoje, com a linguagem eletro-informática, poderia ser chamado por algum não-cinéfilo de slide show. É exatamente uma seqüência de fotos o que vemos na tela. Mas... calma... Há muito mais do que isso na obra de arte à qual me refiro. As belas e intrigantes fotos em p&b vão sendo colocadas de forma tão bem encadeada que às vezes somos iludidos – num efeito psicológico “foto-novela” – de que há ali um movimento, quando na verdade, não há. O fato é que as fotos em “slide-show” dão conta, sem problema, de contar-nos a história, e, desta forma inusitada, o roteiro flui muito bem, obrigado. Além disso, não são usadas apenas fotos, mas também fotogramas – o que significa dizer que algumas cenas foram filmadas previamente no método tradicional, extraíndo-se das filmagens apenas as fotos que interessaram ao diretor. Ou seja, fotografias são, na edição, mescladas a fotogramas (estes, que são cada uma das 24 fotos de cada segundo de um filme). Além disso, há ainda uma breve cena no meio do filme em que temos movimento, e não me cabe aqui dizer qual é.
Então La Jetée é um desses exercícios estilísticos feitos por um cineasta excêntrico da Nouvele Vague? Sim, de certa forma. Mas não apenas isso. Eu diria que trata-se aqui de muito mais. Imagine uma obra de arte que tenha influenciado boa parte da ficção-científica cinematográfica posterior – sim, o filme é de ficção-científica. Imagine que o filme foi feito nos anos de 1960 e ainda hoje é impactante. Imagine que o filme tem suspense, fantasia, amor e tragédia, em apenas meia hora de projeção. Então, imagine o que um cara que se diz cinéfilo, como eu, estava fazendo a vida inteira que não conhecia este filme... Eu. Justo eu, amante de filmes de amor e de ficção-científica. De filmes que fazem pensar, enfim. É, amigos... Nem mesmo em tempos de Internet dá pra se conhecer tudo o que foi (e é) produzido.
A trama? A bela atriz Hélène Chatelain, com seu incógnito rosto, nos conduz, juntamente com seu apaixonado – vivido por Davos Hanich – a uma viagem quase sem volta, da qual eu mesmo não voltei até hoje. Não sei se a trama do filme importa ou convenha ser contada aqui. Até porque o filme é tão curto... O que posso dizer? É mais ou menos um filme sobre viagens no tempo. Inspirou Terry Gillian à realização do esplendido Os Doze Macacos. Está bem assim? A narração de Jean Négroni, os intrigantes efeitos sonoros e a maravilhosa música de Trevor Duncan e coral da Catedral St. Alexandre-Newsky fazem toda a idéia funcionar, de forma macia e ao mesmo tempo áspera, própria à introspecção.
Universos paralelos, intuição de futuros apocalípticos, experimentação psico-estética, pactos com o impossível e com o imponderável, amores impossíveis, inexorabilidade do carrossel da vida, guerra, paixão, nostalgia, fim do mundo, mundos que habitam exclusivamente o desejo – inconsciente ou consciente... La Jetée. Compre, baixe, faça o que quiser, mas não deixe de conhecer esta pequena grande obra do cinema mundial.

Luciano Fortunato.
Próxima semana: "Num momento se está diante da Bíblia e de algum daqueles livros de Richard Dawkins. Você escolhe o último e sabe muito bem onde isso tudo vai parar". SENTADO, de Ulisses Figueiredo.