Número um. Suja e com os cabelos colados, ainda se via sua beleza e fogo. Ela sugou meu sêmen como um bebê faz com uma mamadeira. Talvez como uma prisioneira faminta presa em um calabouço úmido faria com um prato de mingau. E ela era de fato uma prisioneira numa masmorra, e eu seu pretenso salvador. Matei sua sede e sua fome, e minha morte começou. Eu era quase um morto, mas ainda assim a prometi liberdade. As chaves estavam no meu bolso. Ainda com resquícios de mingau viscoso a incomodar a garganta ela me falou sorrindo: “– Que bom que você veio”. Ambos estávamos uns verdadeiros trapos humanos, sujos, fracos, rasgados. Chaves nas mãos. Mas isso não resolvia todo o problema, pois de um lado tínhamos todos os corredores e mais o pátio com os guardas, e do outro lado... Do outro lado o oceano indomável com todas as suas feras do abismo marinho para as quais nossos corpos fragilizados seriam uma conveniente refeição. Com base nisso, as chaves não significariam muita coisa. Mas eu tinha mais do que chaves. Eu tinha dinheiro. Como dinheiro? Eu havia guardado durante seis anos. Matemática e línguas. Eles precisavam do meu conhecimento, que eu os ensinava em troca de moedas: guardas, o cozinheiro, e até o chefe da prisão aprenderam comigo o que seus superiores hierárquicos não podiam ensinar. Com o dinheiro eu poderia subornar alguns guardas, mas era um grande risco ainda assim. E aí? Pularíamos no mar com o dinheiro?
Número dois. A metrópole fervia como lava. Lá em baixo os homenzinhos como palitos de fósforo prontos para queimar. Do alto do décimo quinto andar nós observávamos as formiguinhas e, ao anoitecer, os vaga-lumes sem asas. No calor do apartamento, pés no chão, leite quente com canela, moletom ultra macio. O maravilhoso despojamento nos intervalos de cada amor concretizado por nós, em carne, nervo e espuma. Percebíamos como havia já escurecido e não havíamos botado os pés fora do apartamento, e como isso se dera num piscar de olhos. Nós havíamos feito o tempo voar como águia num rasante. E logo amanheceu mais um dia. E mais uma noite chegou. E mais uma alvorada. E mais um arrebol. Aquele apartamento era o centro da Terra. Enlatados, caixas de cereais, macarrão instantâneo, essas coisas práticas... Para que houvesse mais tempo de retornarmos logo às atividades copulares. Uma semana se passara. Estávamos, com certeza, uns cinco quilos mais magros. Ela com sinais de cistite. Eu com dores pélvicas. Sabíamos que era o momento de dar um tempo e ir nos unirmos às formiguinhas lá em baixo, e também aos vaga-lumes sem asas. Então vestimo-nos decentemente e fomos à porta. Por motivo que desconheço, a chave não estava na porta. Procuramos apressados. Estava o chaveiro numa gaveta. Ótimo. Fomos lá. Nenhuma das chaves servia na fechadura. Alguma coisa estava errada. Arrombar? Não. Nem sei eu teria força para tal. Ligamos para a recepção. Ninguém atendia. Insistíamos. Mas nada de atenderem. Ficamos tensos. Ligar a televisão para acalmar. Ela ligou. O que passava? Nada. Nenhuma programação: apenas a chieira cinza da estática. Arrombar a porta. Tentei com chutes. Tentei com o meu tronco. Nada. Só cansaço. Atirar o sofá na porta? Sofá todo de espuma macia, sem estrutura de madeira. Sentada no chão, com a cabeça baixa, ela rezava e chorava.
Número três. O planeta estava no final da sua última glaciação, mas é claro que não sabíamos disso. Aliás, mal sabíamos falar. Não havia telefones celulares. Havia, sim, instrumentos manufaturados com lascas de pedra polida. Nossas vestimentas de couro peludo, como exigia o rigoroso inverno. Estávamos num estreito vale, na subida de uma colina e meu pé esquerdo estava fraturado. Depois de muito insistir em me ajudar a prosseguir na nossa necessária jornada – já que intimamente sentíamos, ainda que não pudéssemos explicar, que caminhar era preciso – ela declina a si própria o esforço. Por entre as rochas havia alguns montinhos de neve. Cansada de tentar me ajudar, ela me abraçou e tentávamos nos aquecer. Ela tinha dor de dente desde que havíamos iniciado a caminhada. Ela chorava ao meu lado. Esfriava mais e mais. Estávamos sem saída.
Número quatro. Ano 2156. Olhando a Terra do ponto de vista em que estamos, nesta colônia de férias lunar, penso no quanto evoluímos tecnologicamente – e é impossível não pensar nisso quando se está aqui. Tudo bem. Somos um casal à moda antiga e estamos passando nossa segunda lua-de-mel, ironicamente, na lua. E que diferença têm essas galerias para as dos grandes shoppings? O que curtimos aqui na lua não é a lua em si, pois ela é morta. O atrativo nesse lugar é o ser humano, é a auto-contemplação do tipo “veja aonde chegamos”. Todos os turistas que passeiam por aqui têm um sorriso no rosto. Todos com aquela sensação de que se é o máximo, e de que a humanidade é o máximo. Contudo, a sensação contrária também é comum diante da certeza da nossa pequenez face às estruturas cósmicas: “a humanidade é o mínimo”. Eu não tenho conseguido sorrir. Quando penso que na Terra ainda não resolvemos o velho problema da desigualdade social, da péssima qualidade de vida de várias populações, chego a me sentir culpado de estar aqui a passeio, torrando dinheiro. Quanto a ela? Ela sorri. É a primeira vez que estamos aqui – e isso após quarenta anos da construção do primeiro hotel lunar. Hoje a lua está cheia desses conglomerados turísticos, mas ainda assim, não fôssemos privilegiados financeiramente, estaríamos não mais que andando de metrô, como a maioria das pessoas no Planeta. Muita gente vai morrer sem ter conhecido a Europa. E nós dois aqui na lua. E daí. Que merda.
Estamos na fila para o ônibus que fará uma pequena viagem externa em direção a um local próximo ao lado escuro. Ela me abraça contente por sermos um casal relativamente feliz, rico e inteligente. Há meio século atrás, usaríamos a palavra amor para definir o que sentimos um pelo outro. Hoje o termo caiu, me parece definitivamente, em desuso. Pela janela do ônibus vislumbramos aquilo que encanta mais pelo estranhamento que pela beleza em si. É como o fundo do mar, de que se diz belo por ser estranho. E o fundo do mar é inóspito. Portanto o belo no sentido de estranho é diferente do belo no sentido de aprazível, como se disse muito tempo das ilhas polinésias, por exemplo. Ela não faz outra coisa senão sorrir. Chegamos na estação, de onde faremos o mais aguardado, que é o passeio externo, com as roupas especiais de astronauta. Chegamos. E lá fomos. Um pouco distantes do grupo e fora do seu campo de visão, de mãos dadas paramos um de frente ao outro e lemos nossos olhares excitados que diziam “que pena que não podemos tirar essas roupas agora mesmo e treparmos aqui atrás dessas rochas”. Não temos feito muito sexo ultimamente. Ela tem outro homem. E por mais que tenhamos, nós humanos, resolvido moralmente essa coisa de se ter mais de um par sexual sem que haja traumas e neuroses correlacionadas, sempre me fica um pequeno incômodo quando penso que o outro homem deva fazer sexo melhor que eu. Que eu dou a ela, sim, um tipo de alegria importante, e que ele dá outro tipo de alegria, que, por mais que os séculos tenham passado, ainda é a alegria mais importante para os homo sapiens e para qualquer outro animal: a alegria do sexo. E neste momento, ele, o outro cara, está lá na Terra, fazendo sexo com sua esposa que deve estar pensando no amante que dá a ela o que ele não pode dar, e o amante dela na outra mulher dele, e assim, numa reação em cadeia, o planeta inteiro, ao contrário de várias previsões feitas no passado, compartilha sexo como nunca na história humana, da mesma forma que, paradoxalmente, expõe nossa raça ao risco da extinção, por procriar tão pouco – menos que em qualquer outra época.
Olhos nos olhos mais uma vez. Só que agora ela está séria e diz estar passando mal. Não deveria estar, pois o oxigênio da roupa especial, mais a adrenalina do momento, proporcionam sempre uma sensação de tremendo prazer e conforto. Ela se senta. Eu saio para pedir ajuda. Ando com muita dificuldade na baixa gravidade do ambiente e não consigo avistar um turista sequer. Sinto-me numa encruzilhada. Vou em direção ao ônibus ou volto para ver como ela está? Volto. Ela está passando muito mal. Seria defeito no equipamento aclimatador acoplado na roupa? Tento pegá-la no colo. Não é nada fácil – mais pelo volume que pelo peso. Ela diz que não dá. Realmente não dá. Vou atrás do grupo. Por uma dessas negligências tão comuns ao homem, mesmo entre os mais respeitáveis técnicos, aconteceu: eles nos esqueceram. Tomara que quando derem falta da gente haja tempo o suficiente para voltarem e socorrê-la. Como somos irresponsáveis, todos nós... A aventura humana é bela, necessária, inevitável e medonha.
Eterno retorno. Moedas de prata num mar medieval. Lágrimas secas no assoalho de um apartamento onírico. Múmias da ultima glaciação numa montanha de neves eternas. Não existem urubus na lua. Quem poderia ser feliz sozinho? Quem poderia comemorar sozinho o prêmio de uma loteria, a publicação de um livro, a honra de uma condecoração? Gozar é gozar junto. Viver é viver junto, em suas mais variadas formas. Sei que tudo nessa vida deve passar, tudo passará e que tudo voltará. Como eles, que se foram. Eles que sempre voltarão.
Luciano Fortunato.
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